Gabriel Boric, um revolucionário em busca de acordos no Chile centauro

Após rejeitar pela segunda vez uma nova constitução, sociedade chilena segue com seus problemas estruturais. O desafio para o governo Boric permanece: algo precisa mudar.

Governo chileno tem oportunidade para uma reconfiguração política, fundamentada na liderança do presidente Boric, para alcançar novos acordos nacionais

Por Juan-Pablo Pallamar |
Pesquisador da Sorbonne Université Paris Nord

Santiago do Chile, 24 de dezembro de 2023

A rejeição popular da segunda proposta constitucional atravessa o Chile como um eco de profundo descontentamento. Dizem que este episódio marca o fim do processo constituinte, pelo menos por alguns anos, um caminho tortuoso que não conseguiu concretizar nada.

Após o fracasso da primeira proposta, impulsionada por uma esquerda atomizada, independente e desorganizada, o país virou para o outro extremo, como um pêndulo já conhecido, em direção às propostas do bolsonarista José Antonio Kast, que também foi finalmente rejeitada. Como num tabuleiro, voltamos à casa de partida, e a Constituição de Pinochet, imposta a ferro e fogo pela ditadura neoliberal pareceu menos medieval do que a proposta da direita que Paulina Vodanovic, presidente do Partido Socialista do Chile (PS), qualificou como “kastituição”.

Rejeições constitucionais: sintomas de uma enfermidade política terminal

Essa situação reflete uma prolongada crise nas estruturas de governança política, evidenciando a incapacidade do sistema para canalizar e responder ao descontentamento popular manifestado em um levante social que desafiou a ordem institucional estabelecida. Nesse contexto, o jovem presidente Gabriel Boric, eleito em um cenário político fragmentado e após um segundo turno eleitoral, enfrenta o desafio de governar em um cenário de bloqueio institucional. O bloqueio institucional, que agora é uma característica sistêmica dos governos pós-ditadura tanto do Chile quanto de vários países da América do Sul.

O governo de Boric enfrenta um conjunto de propostas de reformas paralisadas, obstruídas por equilíbrios de poder delicados, escândalos internos e erros estratégicos. No entanto, apesar dos desafios, surge, entre poucas alternativas à vista, uma oportunidade para o presidente Boric.

Allende em frente ao La Moneda: uma sombra para todos os governos

Após a derrota da direita na noite de domingo, representantes de todos espectros políticos já estavam debatendo um consenso para reformar o sistema eleitoral no parlamento. Parecem compreender que, independentemente do governo, há nas instituições do sistema político uma problemática central enraizada no status quo.

No entanto, uma cirurgia no sistema político é arriscada dada a atmosfera nacional carregada, especialmente em questões sensíveis como segurança e desigualdade social. Temem uma interpretação amarga da população em meio a um clima antipolítica. Que se enxergue apenas um rápido e simples acordo eleitoral entre políticos, sem a presença de temas importantes para a população, como segurança e desigualdade.

A síncope institucional crônica do Chile e o desafio sistêmico da governança

Nesse cenário, o governo tem uma oportunidade de uma reconfiguração política, fundamentada na liderança do presidente Boric para alcançar acordos nacionais que, sem rodeios, implicam concessões significativas à direita, a fim de viabilizar propostas progressistas.

No entanto, em um contexto de hegemonia tradicional da direita na mídia e uma burguesia econômica concentrada e transnacional, a esquerda se mostra dividida e em conflito interno. O escândalo “Democracia Viva” revelou corrupção dentro do principal partido da coalizão Frente Ampla, Revolução Democrática, minando sua imagem de integridade e consolidando o papel central do PS no governo.

Assim, é na visão estratégica do país que o governo pode encontrar um caminho para acordos nacionais que aliviem a tensão social e dinamizem a governança. Abre-se a possibilidade de buscar acordos sobre duas questões-chave: tendo já cedido na agenda de segurança, um pacto nacional de segurança ambicioso pode ser proposto e reenfocar a ideia de reforma educacional para mudanças estratégicas (não valorativas) nos programas escolares.

sociedade chilena segue dividida, polarizada e insatisfeita.

Enriquecer a estratégia dos acordos nacionais: segurança, educação e foco nas regiões

Trata-se, por um lado, de fortalecer os modelos municipais de segurança e uma reforma educacional que estabeleça a alfabetização digital universal (ou seja, a alfabetização da população para a leitura e escrita da linguagem informática: JavaScript, Python, HTML, PHP, SQL). Esses elementos poderiam formar a base de um consenso nacional, afastando-se das históricas disputas entre gratuidade e privatização do sistema educacional.

Concebida como força de segurança municipal, a segurança cidadã remonta ao final da década de 1990 como proposta de Joaquín Lavín, na época prefeito pela UDI em Las Condes e posterior candidato à presidência da República. Embora hoje a maioria dos municípios do país possua uma força de “segurança cidadã”, sua atuação ainda é “amadora”, com competências que limitam sua eficácia e favorecem também abusos de poder.

Uma reforma para elevá-las ao status de polícia municipal, com o objetivo de profissionalizar e alcançar uma segurança municipal unificada, não só consolidaria uma política de segurança municipal mais coerente no país, mas também não seria compreendida como a direita não apoiando tal política de segurança em troca de seu respaldo em outras áreas de interesse político.

Uma questão pouco discutida mas crucial nas sociedades contemporâneas globalizadas. Para o desenvolvimento econômico sustentável e para a soberania democrática: a alfabetização digital universal. Uma política de programação universal obrigatória ou alfabetização digital universal é comparável apenas à revolução que foi a universalização da leitura, da escrita e das matemáticas no mundo.

O analfabetismo digital, ou seja, a incapacidade de ler e escrever código-fonte (ou linguagens de programação como JavaScript, Python, HTML, PHP ou SQL), implica um profundo atraso para a inserção do Chile na economia global, além de representar riscos perigosos para a soberania nacional e a democracia. Isso inclui a multiplicação do cibercrime, a digitalização da burocracia do Estado e, ainda mais, a transparência democrática das informações e do voto eletrônico.

Reenfocar a atual e histórica tensão entre gratuidade e privatização do sistema educativo para outra área de igual importância e impacto, que não deveria representar uma divisão ideológica, é algo que, queiramos ou não, terá que esperar por resultados por enquanto. Contudo, os dois referendos de rejeição a propostas constitucionais diametralmente opostas mostram que o sistema político está travado na resolução dos nós gordianos da sociedade chilena.

Finalmente, uma política ambiciosa de integração territorial emerge como um tema central. Complementando os acordos previamente mencionados em segurança e educação com uma política robusta para as regiões, a integração territorial do país promete ser um ponto de união para diferentes setores políticos, dadas suas amplas implicações para o progresso nacional em todas as suas facetas.

Se Pinochet gozou de popularidade na Patagônia, sem dúvida não foi por seu carisma, mas sim pela visão territorial que o militar possuía, o que levou ao traçado da Carretera Austral em um contexto de extrema e crescente tensão com a Argentina pela fronteira internacional em vários pontos da Patagônia. Hoje, sob circunstâncias diferentes e com um enfoque renovado, o presidente Gabriel Boric, natural da região de Magalhães, posiciona-se como uma figura chave para impulsionar uma política ousada de integração para as regiões de Aysén e Magalhães, com alto impacto social e econômico para o país.

Essa iniciativa poderia se inspirar em modelos bem-sucedidos, como o da Noruega, que conseguiu integrar efetivamente suas regiões de fiordes. A proposta incluíria a dupla conexão dessas áreas, tanto por via terrestre entre Caleta Tortel e Puerto Natales quanto por um significativo desenvolvimento do sistema de cabotagem portuário, entre o Cabo de Hornos e Puerto Montt.

“Nuestro norte es el sur” foi pintado por Joaquín Torres García em 1944 em seu livro Universalismo Constructivo, desafiando-nos a repensar a partir do sul, a revalorizar e a fortalecer as conexões na América Latina. Isso se torna especialmente relevante no contexto da emergência social e econômica do Chile e de nossos vizinhos na globalização.

 

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