Texto: Redação, Linha8
Entre os assuntos que emergiram com a pandemia, um dos destaques é ‘o papel da ciência na sociedade e no cotidiano’. Se antes o interesse estava restrito a curiosidade ou aos círculos de gente entendida, hoje ele encharca páginas de jornais, programas vespertinos de TV, pautas de redações e vídeos de influentes no Youtube.
Assim como o Brasil descobriu que possuía um complexo e robusto sistema público e universal de saúde – o SUS ganhou milhões de fãs que antes o detratavam – aos poucos a importância do conhecimento científico, pesquisas, vacinas, laboratórios, compuseram o debate público, bem como os nomes de institutos públicos da área foram sendo introduzidos ao nosso vocabulário cotidiano.
O tão nobre tema não teve a sorte de escapar da polarização que marca os nossos tempos e logo foi tragado para a guerra política insuflada sem tréguas pelo presidente da república, Jair Bolsonaro (sem partido), e seus seguidores. Assim, atravessamos os últimos meses acompanhando o embate entre cloroquina versus vacina, negacionistas versus cientificistas, saúde versus economia.
Não por acaso, o país passa pela maior crise da ciência brasileira nas últimas décadas, o que afeta as universidades públicas, a produção de conhecimento, as pesquisas em andamento e nos joga em um cenário de futuro nebuloso, afetando a competitividade industrial, a formação de uma nova geração de cientistas e tornando o Brasil ainda mais dependente de tecnologias estrangeiras. Enquanto universidades e estruturas científicas são sucateadas, o país perde soberania.
Os dados são assustadores e alarmantes. O gasto com universidades federais para 2021 é igual ao ano de 2004, mas temos o dobro de alunos e o orçamento para itens básicos como água e luz está no patamar de 17 anos atrás. O CNPq (Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) terá para o corrente ano, o menor orçamento do século XXI, o que afeta novos trabalhos e pesquisas em curso.
Um outro exemplo dessa crise pode ser visto na recente edição da Revista Pesquisa Fapesp que traz um dossiê sobre o mais importante centro de pesquisas espaciais do país – INPE – que completa 60 anos enquanto sofre com o pior orçamento de décadas com importantes projetos ameaçados. O Instituto guarda o supercomputador Tupã: “responsável por previsões de tempo e clima, tratamento e coleta de dados meteorológicos, monitoramento de queimadas e emissão de alertas climáticos.” E adivinhe? Seu funcionamento está ameaçado por falta de recursos, manutenção e modernização o que pode gerar um apagão meteorológico no país, entrando assim na fila dos apagões hídricos e energéticos que nos rondam.
O sistema que já sofreu uma pane real, não conseguindo se safar da incompetência que nos governa foi o do currículo lattes. A plataforma nacional que armazena a totalidade de currículos de pesquisadores e pesquisadoras ficou simplesmente 14 dias fora do ar, causando pânico em cientistas e colocando em xeque a transparência e segurança dos dados de profissionais guardados pelo CNPq. As causas apontadas são falta de peças, computadores antigos e baixo investimento em tecnologia.
Essa dramática situação tem gerado duros pontos de interrogação para quem trabalha ou tem pretensões de investir seu futuro na pesquisa científica e tecnológica. O atual presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Renato Janine Ribeiro, alerta para a chamada “fuga de cérebros” que o país deve começar a sentir com mais intensidade: “A maior parte dessa evasão, é de gente que fez a graduação em universidades públicas, fez mestrado, doutorado, a maior parte em universidades públicas. Então, o Brasil pagou a formação dessas pessoas e estamos dando de presente esses talentos para países ricos”.
Na mesma direção, no último dia 11 de agosto, o Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp) fez uma dura nota criticando a condução da política de educação e ciência do governo federal em que afirma que há “um verdadeiro desmanche em curso, o qual trará graves consequências a médio e longo prazos. Um jovem ou uma jovem brilhante, quando aceita um convite para trabalhar em uma universidade ou instituto de pesquisa no exterior, acarreta, para o país, a perda de mais de uma década de investimento em sua formação. Da mesma forma, a desmobilização de um grupo de pesquisa não tem retorno, mesmo havendo recursos.”
Os alertas do Cruesp e do presidente da SBPC encontram base em outros dados que refletem o péssimo momento econômico e social que vive o país, produzindo um encontro de crises. Recente pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) revelou o impressionante dado apontando que 47% dos jovens deixariam o país se pudessem. A principal causa é a dificuldade de encontrar emprego, somada a falta de perspectivas. Em 2020, a faixa que vai de 15 a 29 anos trazia o alarmante índice de 27% de jovens que nem estudam, nem trabalham. Na mesma fatia, 70% diziam ter dificuldade de conseguir trabalho.
Apesar da gravidade do quadro, os integrantes do primeiro escalão do governo federal, em orquestral sintonia com o presidente, insistem em fugir dos reais problemas transitando entre apresentar “soluções” absurdas e/ou buscar culpados nos velhos fantasmas comunistas que povoam o imaginário nacional desde o lendário Plano Cohen de 1937.
Nessa toada, o ministro da educação Milton Ribeiro não hesitou em falar francamente para o país sobre seus planos para o ensino superior. Na visão do pastor presbiteriano e ex-reitor da Universidade Mackenzie o “País tem excesso de vagas no ensino público superior que deveria ser reservado para poucos e a prova disso é que há muitos engenheiros que dirigem Uber”. Para completar ele arremata “que reitores de universidades não podem ser esquerdistas, nem as transformarem num comitê político de um partido”. Na mesma entrevista Ribeiro admitiu que tomou um susto quando assumiu o MEC, pois não sabia que administraria cerca de 50 hospitais universitários. Seguramente não era a única coisa que desconhecia sobre a sua pasta. Matéria de agosto da Revista Piauí traz uma boa ideia do perfil do responsável pela educação brasileira.
Ainda antes do governo Bolsonaro o Brasil já vinha enfrentando dificuldades no investimento em ciência. Relatório da Unesco mostra que entre 2014 e 2018 estávamos atrás da média mundial na proporção de gasto do PIB no setor, que foi no período de 1,79%, enquanto o país alcançou 1,26%. Ou seja, os últimos cortes do governo federal ainda não entraram nesse cálculo o que deve agravar a situação do país nesse ranking.
A atual crise não é algo tão incomum na história nacional, infelizmente. Das últimas quatro décadas, praticamente três são contabilizadas como perdidas. Ainda assim, é inegável que o Brasil produziu avanços sociais e no seu sistema democrático, mesmo que preservando desigualdades estruturais e históricas.
A primeira década do século XXI, período de maior investimento em ciência e na expansão do ensino superior, produziu frutos que ainda refletem nos dias atuais. Um exemplo é que nos últimos vinte anos o país viu triplicar a presença de negros, indígenas e pobres nas universidades, o que mostra que o Brasil tem capacidade construir instrumentos para reverter esse quadro.
O nó de agora é que o atual governo coloca como prioridade a retirada de conquistas sociais estabelecidas desde a constituição de 1988, agravando a crise social. Não por acaso as guerras contra a ciência, o conhecimento e a democracia caminham juntas com uma agressiva agenda privatista e de ameaça aos direitos trabalhistas, deixando o neoliberalismo dos anos noventa ruborizado.
É praticamente unânime o estado de perplexidade entre entidades, institutos, professoras/es, pesquisadores/as e cientistas e os alertas são quase diárias para chamar a atenção da sociedade brasileira para a gravidade do quadro que o setor enfrenta. Passada essa turbulência, o país terá o enorme desafio de discutir e executar um plano de emergência que enfrente o conjunto de problemas deixados pela pandemia. A educação e a ciência obrigatoriamente precisaram ocupar o primeiro plano dessa empreitada.
Linha 8
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