As obscuras formas de defender uma guerra

Alguns debates que aportam ao sul do Equador assumem formas muito particulares, como o curioso ‘Manifesto pela Paz’ que não se opõe ao lançamento de bombas.

Redação | Linha 8 |

Como já disse Eduardo Galeano, nenhuma guerra tem a honestidade de confessar que mata para roubar. O desastre na Palestina começa a mostrar seu real objetivo expansionista que deve se confirmar em breve. Primeiro com a ocupação militar por terra, seguida da anexação de Gaza ao Estado de Israel. Ainda é prematuro determinar o tempo e a forma desse processo, mas os acontecimentos apontam nessa direção.

Caso se concretize, será o fim da solução dos dois Estados.

Mapa inglês do século XIX descreve a Palestina antiga

O comentarista Jorge Pontual afirmou sem vírgula, nem porém que: “os que defendem o cessar fogo na Faixa de Gaza estão na verdade fazendo o jogo do Hamas e do terrorismo.” Muitos protestaram e ficaram chocados com a declaração. Mas essa opinião está longe de ser isolada.

Na verdade, são tantas pessoas que concordam com o obscuro comentário que elas decidiram organizar um manifesto na mesma direção das afirmações de Jorge Pontual. Mais cautelosos, optaram por usar outras palavras. Como não podem defender o bombardeio indiscriminado da Faixa de Gaza, se escondem atrás de duas ideias facilmente manipuláveis. Paz e Terrorismo.

A repentina “causa da paz e do combate ao terrorismo” conseguiu juntar nessa iniciativa Ratinho, Luciano Huck, Danilo Gentili, Zico, Caio Blinder, Abilio Diniz, Andrea Matarazzo, Henrique Meirelles, Viviane Senna, Salim Mattar, Carolina Dieckman, Patricia Abravanel e muitas outras personalidades destacadas e distintas da nossa sociedade.

Tão lacônico quanto frio, o documento traz o título: “Contra o Terrorismo e Pela Paz”.

Milhões de pessoas pelo mundo pedem com indignação um urgente cessar fogo. O capitólio, sede do parlamento estadunidense, foi ocupado por centenas de judeus pacifistas e antissionistas exigindo a suspensão imediata dos bombardeios. Reafirmavam que o governo de Benjamin Netanyahu não agia em nome deles.

Grupo ‘Judeus pela Paz’ ocupou o capitólio pelo cessar fogo em Gaza

O Conselho de Segurança da ONU, em um emblemático episódio, teve importante resolução sobre a guerra barrada isoladamente pelos EUA. O veto tem o efeito de dificultar a formação de corredores humanitários, a negociação, o cessar fogo e principalmente impede a atuação coordenada da comunidade internacional em defesa de civis.

O dito manifesto ignora tais fatos.

Assinado por uma certa elite branca brasileira  –  afamada por sua ignorância e aversão aos ritos democráticos – o documento se omite de todas questões cruciais descritas acima e basicamente resume sua preocupação aos “hediondos grupos terroristas (árabes) que ameaçam as sociedades democráticas.” Por serem bons religiosos os signatários lamentam as mortes de civis. Mas por alguma razão não conseguem se somar ao clamor pelo fim da guerra.

Corretamente o texto é econômico. Seguisse seu curso lógico invocaria abertamente o direito de se defender dos terroristas matando civis inocentes e também a evacuação da população de Gaza, o que talvez afastasse alguns desavisados (?). Os signatários conseguiram esquecer mais de 1 milhão de vítimas dos deslocamentos forçados em Gaza.
A paz, nesse caso, não passa pela vida segura dessas pessoas.

Em uma democracia os ricos e as personalidades destacadas têm o direito de se manifestar. O mais recorrente por aqui é que sigam a descrição e não se arrisquem em posicionamentos além do senso comum. Evitam assim o ingresso em polêmicas custosas aos negócios e a imagem. Não participam do cansativo debate público e concentram seus esforços nas conversas do poder real, que ocorrem em salas fechadas de acesso restrito.

É verdade que durante a sinistra aventura que o país viveu com o governo do capitão da reserva, a turma do ‘Riquistão’ teve menos travas na língua que de costume. O resultado é a maior coleção de barbaridades já registradas pela nossa história. Seguramente o tal “manifesto pela paz” entrará nesse catálogo.

Outro feito da iniciativa foi unir figuras do bolsonarismo raiz e da terceira via.

Todos fingem que o Estado Israelense não pratica terrorismo e crimes de guerra. Não pedem cessar fogo. Não falam sobre o Estado Palestino e nenhuma palavra sobre corredor humanitário. Bombardeios de alvos civis como hospitais, casas e escolas recebem o silêncio. O combate a islamofobia e ao antissemitismo, que são duas chagas turbinadas com essa guerra, não está na preocupação desse peculiar pacifismo.

A elite brasileira foi agraciada por um estado racista, escravocrata e colonizado. São os herdeiros das matanças de índios e camponeses, praticadas para roubar terra.

Escravocratas mantiveram o poder no Brasil. fotomontagem jornal da USP

Na verdade, o mais provável é que muitos se reconheçam nessa espiral de violência e acreditem, no fundo de suas almas, que tanto lá no presente quanto cá no passado, a formação de uma nação só se realiza com massacres e pelo uso da força que expulsa e dizima povos originários ou revoltas populares.

Qual brasileiro/a nunca ouviu elogios à monarquia por sua capacidade de unificar esse grande país, sufocando e eliminando todas as revoltas que sacudiram esse território por mais de três séculos?

Assim foram as tragédias que ergueram o Brasil e a América Espanhola. E não foi diferente com a formação sanguinária dos EUA: land of freedom and opportunity.

O que para muitos é um pesadelo de horror e sofrimento humano que nos impediu de conhecer novas culturas, a nossa própria história e antepassados, para outros representa apenas o percurso que lhes permitiu chegar ao topo da pirâmide.

Não é por acaso que o “PIB brasileiro” apoia o modelo genocida e terrorista de construção de um país que impõe o apartheid para se consolidar. No Brasil da República, o apartamento social e racial muitas vezes prescindiu de leis detalhadas, mas sempre esteve presente na prática cotidiana e na cultura nacional.

Nunca esqueçam que esse país além de escravizar, julgou e puniu escravos que se levantaram contra seus senhores, enquanto os jornais e a alta sociedade suspiravam indignados com a ousadia e violência dos negros. E isso está no DNA do Brasil. Os que se identificam ou se omitem frente as histórias de massacres e expurgos sabem exatamente quais são os benefícios e os beneficiados de uma carnificina.

É um direito desconfiar das palavras de paz dos favorecidos diretos de qualquer guerra.

Capitanias hereditárias portuguesas (1704)

Referências:
1. https://linha8.com.br/ate-quando/
2. https://contraoterrorismoepelapaz.com.br/
3. https://blogdaines.wordpress.com/2014/03/19/riquistao-um-livro-garapa-um-documentario-a-obscena-desigualdade-social-escancarada-nas-americas/
4. https://g1.globo.com/mundo/noticia/israel-impoe-regime-de-apartheid-aos-palestinos-diz-relatorio-agencia-da-onu.ghtml

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