Mais de 200 mil pessoas vivem nas ruas das cidades brasileiras

Número cresceu dez vezes em 10 anos e é um dos grandes desafios do próximo período. Pandemia e governo Bolsonaro agravaram o problema.

Redação  | Linha 8  |

O fenômeno não tem uma única causa. Crises econômicas, aumento do custo de vida, falta de política pública e habitacional. Aluguéis caros também tornaram as grandes cidades lugares com alta concentração de moradores de rua. Mas o fato é: em uma década, a população de rua cresceu dez vezes em todo o território nacional. Estamos falando de estatísticas oficiais, portanto, o número real pode ser maior e chegar próximo dos trezentos mil.

Esses dados falam muito sobre o percurso do país na última década. E foi um grande salto para trás.

Agora, o Brasil precisará de ações integradas dos três entes federativos, que tenham um olhar para as dimensões da renda, moradia, saúde, trabalho e proteção social. É uma grande tarefa, e de certa forma, o Estado Brasileiro tem perdido a capacidade de enfrentar problemas com essas dimensões e que exigem superar eventuais divergências políticas.

Nesse ponto reside um grande desafio de Lula nesse mandato.

A extrema direita que teve seu período de carnaval verde-amarelo, deixou um legado nefasto em muitas cidades brasileiras: estimulou ainda mais um verdadeiro ódio aos pobres e às políticas sociais e assistenciais. Essa raiva ganha ares muito violentos quando falamos de população de rua, grupos de sem teto e setores mais vulneráveis.

Desigualdade obscena compõe a paisagem das grandes cidades brasileiras.

Escolhemos três cenas que nos ajudam a entender o zig-zag que o país deu nesse assunto nos últimos treze anos. São pequenas fotografias da nossa história que revelam que, apesar das dificuldades, é possível avançar em políticas de inclusão da população de rua e que tornem nossas cidades mais justas e democráticas.

CENA 1
Manhã de 21 de julho de 2010. Lula concede entrevista para a TV Record no Palácio do Planalto. Atrás dele está a bandeira do Brasil e o quadro ‘Cena indígena’ do pintor Giovanni Oppido, obra de 1959. É final de seu segundo governo e ele chora duas vezes na conversa. Ao comentar as críticas de empresários trazidas pela entrevistadora o presidente retruca, afirma que o setor nunca ganhou tanto dinheiro com as obras de seu governo e que ele deixará uma nação menos desigual e com os pobres tendo mais sentido de pertencimento ao país.

Foi as lágrimas ao falar do convênio de R$ 200 milhões assinado entre o BNDES e cooperativas de catadores de papel no Largo do Glicério, região mais pobre do centro de São Paulo. Em seguida, ao lembrar o diálogo com moradores de rua, nova emoção. Ele descreve a conversa: “presidente, a gente não veio aqui pedir nada, a maior conquista é o fato de estarmos dentro do palácio”, lugar que eles jamais pensaram em entrar, completa um Lula em prantos que pausa a entrevista. Pega o lenço, passa no rosto, se recompõe e completa: “acho que estou ficando velho”.

CENA 2
Terça-Feira, 13 de dezembro de 2022, Brasília amanheceu nublada, com ventos fortes e temperatura mínima de 20,0°C . Foi um dezembro chuvoso com volumes de água acima da média e mais frio que o normal. Bolsonaro planeja suas últimas medida. Na noite anterior, uma turba queimou ônibus e carros contra a diplomação de Lula, que fora confirmado mais cedo como o próximo presidente pelo Tribunal Superior Eleitoral. Foi mais um choque de realidade nos assessores próximos do mandatário, que buscavam saídas golpistas para impedir a posse do petista.

Mas a caneta ainda faria maldades e uma aconteceria naquela manhã. O congresso tinha recém-aprovado um projeto proibindo a arquitetura hostil em espaços públicos nas cidades brasileiras. A lei combate o higienismo, carrega o selo dos direitos humanos, tem o nome de um padre progressista e o autor é um senador petista. Intragável para o bolsonarismo. O veto veio sem grandes justificativas. A lei formulada pós-pandemia para proteger os mais vulneráveis ficou sob risco, por três dias. O Senado, em sintonia com o novo governo em transição, derrubou o veto presidencial e reafirmou a lei.

CENA 3
Segunda-feira, 11 de dezembro de 2023. Brasília aguarda mais uma onda de calor, das muitas que o país teve ao longo do ano. Em auditório lotado, no saguão do Palácio do Planalto, acontece o evento que marca o ‘Plano Ruas Visíveis, pelo direito ao futuro da população em situação de rua.’ Autoridades e movimentos sociais celebram o novo marco, fruto da lei que o congresso preservou da caneta de Bolsonaro, um ano antes. O ministro Alexandre de Moraes está presente. Desde a pandemia, o STF decidiu diversas vezes pela proteção da população em situação de rua e também cobrou do Executivo prazos e medidas objetivas sobre o tema.

Lula anuncia investimos de 1 bilhão de reais e uma série de ações que compõem o Plano Ruas Vísiveis. Também presentes, o senador capixaba e petista Fabiano Contarato, autor da matéria, o Ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida e o Padre Julio Lancelloti que dá nome a lei. Lancellotti vai ao microfone e é direto: “Os pobres conseguiram voltar ao palácio e nós te elegemos, presidente Lula, para que você voltando ao planalto nós viéssemos juntos… e o povo da rua estando aqui, não haverá nenhum arranhão no patrimônio público.” Referência a frustrada tentativa de golpe em 8 de janeiro.

Treze anos separam a primeira cena da terceira.

Lançamento do ‘Plano Ruas Vísiveis’. Moraes, Alckmin, Lula, Lancellotti e Almeida. 11/12/23

Segundo o IPEA, em 2023 cerca de 68% da população de rua se declara negra, enquanto brancos são 31,%. Mulheres representam 11,6% da faixa adulta. Outro dado revela que 24% não possui certidão de nascimento, nem carteira de trabalho. Também 29% declararam não ter título de eleitor.

Apenas na cidade de São Paulo, cerca de 55 mil pessoas moram nas ruas e no Estado, o mais rico do Brasil, são quase 90 mil.

Esses números, ao final do governo Lula 3 serão um termômetro de avaliação, apesar da responsabilidade ser da União, Estados e Municípios. Dois quesitos estarão em análise. Primeiro, a capacidade de construir uma agenda envolvendo, inclusive, aliados de fora do campo progressista, isolando mais os bolsonaristas. E segundo, conseguir mostrar cidades com referências de políticas sociais integradas e que apresentem uma diminuição sensível dessa população em extrema vulnerabilidade.

O tempo corre.

Pouco mais de dois anos é o prazo para o Governo Federal e Lula apresentarem mudanças ou caminhos seguros que alterem essa triste realidade. É inegável que há uma importante iniciativa lançada, resta saber se será suficiente para mudar esse jogo.

Padre Júlio usa marreta para remover calçada feita contra moradores de rua. Gesto inspirou lei regulamentada por Lula.
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