Redação | Linha 8
Multiartista com grande influência da periferia de Osasco mistura teatro, música, poesia e resistência. Jovem, negro e gay não nega nada, mas vai sempre além. Desponta como um dos novos nomes da música brasileira.
Ele nunca para de caminhar. O nome é instigante e quando pensamos em andarilho, logo imaginamos um ser errante, viajando sozinho, sem rumo e sem direção. É uma imagem criada desde tempos imemoriais. “É dentro dessa poética que o Cha Alberto, criador do Andarilho, encaixa-se. Sigo o meu destino, dentro do tempo presente, trazendo o passado e invocando o futuro e assim vamos absorvendo as experiências dessa vida”, nos conta Andarilho Cha, nessa conversa.
O Linha 8 fez a primeira entrevista do portal com Cha Alberto para falar das dificuldades que os artistas independente e de periferia têm enfrentado no meio da pandemia de Covid-19. Também conversamos sobre processos criativos durante o enclausuramento, o significado da Música Preta Brasileira Teatral, influências musicais, política e espiritualidade.
Linha8: Essa é primeira entrevista do Linha 8, justamente com um artista negro, independente e da periferia de Osasco, o que não é por acaso. Quem é o Andarilho Cha?Andarilho Cha: O Andarilho vem das provocações que eu recebo do mundo. Ele é um personagem, alter ego, uma entidade. Digo que está dentro de mim, mas também dentro de você. Em mim representa um espírito anarquista e subversivo. Tem a ver como fui reprimido na infância e adolescência, nos sistemas que somos inseridos. No caso, em estruturas racistas e homofóbicas. Senti a necessidade de criar esse personagem para defender minhas músicas autorais que carregam ironia, mas falam sobre assuntos sérios. Sem medo de desconfigurar o padrão e sem medo de simplesmente ser. Um punk!
L8: Como você olha para a nova geração, da qual faz parte, que está surgindo na música e na arte brasileiras? O que chama sua atenção e o que você ouve?
Cha: É difícil dizer. Quando preciso escrever sobre isso, penso: o que esse Andarilho escuta? Os algoritmos podem dizer melhor que eu. Na minha lista de Bjork até Falamansa. Zeca Pagodinho e Daft Punk. Trazendo para a nossa geração, sempre faço uma pequena curadoria do que recebo de artistas de todo canto. Principalmente agora, nesse período sombrio que estamos, onde todos se expressam muito, há coisas muito autênticas e necessárias sendo ditas. Mas eu aqui vou puxar sardinha para minha gangue, que está trabalhando comigo. Então procure o Melifona, garoto prodígio que está produzindo o novo som do Andarilho. O Katu, que também está envolvido na nova sonoridade do Andarilho. Manabella, uma parceirona e irmã de música e de vida, poeta, rapper, preta, baiana.
L8: Você chama seu trabalho de Música Preta Brasileira Teatral. Nos conte mais sobre isso.
Cha: É anárquico não aceitar os rótulos que a indústria musical nos coloca Não é para ser “diferentão”. É por acreditar que nossas expressões artísticas são muito maiores que rótulos. A Música Preta Brasileira Teatral nasce da mistura de influências que o Cha Alberto é, junto com o universo do teatro que me abraçou. Eu brinco que fugi com o circo. Quando fazia faculdade de Rádio e TV, o que eu mais queria era interpretar. Em um momento eu disse para mim mesmo: “vou largar essa faculdade e vou estudar teatro”. E fui abraçado pela arte. Escrevo desde a adolescência. Mas quando assumi isso dentro de mim: “você é ator, cantor, é um ator-cantor”, o teatro já estava presente nessa hora e só se juntou com a vasta sonoridade que transita dentro desse Cha Alberto. Não tinha outro caminho a não ser gritar teatro e música.
L8: A Sandra de Sá já havia falado sobre a Música Preta Brasileira e décadas mais para trás o país também conheceu o Teatro Experimental do Negro.
Cha: Existe um artista que eu me apaixonei na hora por sua estética e sonoridade sonoridade que foi Itamar Assunção. Ele tem muito a ver com essa configuração. É o tipo de apresentação que eu gosto de assistir. Dentro do Cha Alberto existe o Itamar Assunção porque fui influenciado por essa música preta brasileira teatral. Mas sempre querem classificar nossa arte. Quando te falam que seu som é MPB, você também acredita. Até porque nós gostamos de MPB, da tradicional Música Popular Brasileira. Então, a primeira vista o seu som é MPB. “Peraí”, eu pensei. É contemporâneo demais, não se encaixa com tal coisa. Então disse para mim mesmo “eu vou exercer a minha função de ator-criador e quero que se dane” (risos). Vou criar meu próprio universo já que não estou conseguindo me encaixar em nenhuma dessas classificações. Foi aí que ressignifiquei. Mudei as siglas, as palavras e coloquei Música Preta Brasileira Teatral, porque é uma música representada por um corpo preto. É brasileira, porque transita por todas as linguagens nacionais mas também se abre os sons do mundo. Nasce no Brasil, é teatral porque faz cena e traz um personagem que desconfigura a ideia de apenas fazer um show em cima do palco.
L8: Estamos, por cerca de um ano, enfrentando essa pandemia que mexeu com nossas vidas. Como você está enxergando esse momento tão difícil?
Cha: Politicamente falando – sem citar nomes de pessoas para não criar um campo energético negativo – primeiramente a gente precisa aprender a votar e entender que aquele cargo é sério e a gente não pode mais deixar esses “metedores de louco” assumirem esse posto. Porque estamos agora em uma situação que desafiou o mundo inteiro. E o nosso Brasil, com tantos recursos, tem uma péssima administração, nesse momento sombrio que estamos vivendo. Um dos novos trabalhos do Andarilho é uma música chamada “Meteu o Louco”. Pretendo fazer um universo imagético dando umas diretas a esse governo que está cheio de “metedores de louco”. Dentro desse contexto, eu estou falando de política, de aprender a votar. Quando chegar o dia das eleições a gente precisa tirar o romantismo e começar a pensar de uma maneira um pouco mais racional. Porque o romantismo ele faz com que você se entregue de uma maneira cega, para qualquer tipo de proposta. Indo para o lado mais espiritualizado, onde tenho mais esperança, eu quero ter otimismo. Sei que não estavamos esperando por isso, de ver tanta gente morrer dessa maneira. Espero que isso acenda em nossa consciência o dever de nos apegarmos aos momentos mais preciosos enquanto estamos em vida. A natureza está aí para mostrar que é muito mais forte que os sistemas criados.
L8: Como foi a produção artística nesse período de isolamento e trocas limitadas? Como isso tem impactado o seu trabalho e reflexões?
Cha: É muito marcante! E me pegou no meio do processo da gravação do novo EP. Me juntei com o Melifona em seu estúdio e começamos a produzir as novas músicas do Andarilho… e aí chegou o fim do mundo e ficamos sem entender nada. Cada um teve um processo diferente. Fiquei baqueado no começo: “Putz! Eu estou gravando um novo disco. Só pago minhas contas e me alimento trabalhando com público.” Eu tinha dois caminhos, o desespero ou o otimismo. Eu pensei: “vamos trabalhar e enxergar as ferramentas para ganhar dinheiro, se sustentar e não enlouquecer”. Quando havia uma brecha, eu gravava mais um pedacinho de uma música e fui sobrevivendo de ‘lives’. Nas primeiras semanas da pandemia, eu vi que a galera estava enlouquecida na internet. Fiz live com lambaeróbica, karaokê e comecei a usar do entretenimento para me fazer útil para as pessoas nas minhas redes e ao mesmo tempo para não enlouquecer.
Foi um processo onde me aproximei mais do lado espiritual, meditação e conhecimentos filosóficos que até então não conhecia, como estoicismo ou matemática de personalidade, o eneagrama. E sempre otimista, jogando para o universo “vem vacina” e pensamentos positivos.
L8: E os plano para o futuro, nos conte sobre os próximos trabalhos.
Cha: Estamos finalizando um novo EP com nome forte. Boa esponja que sou, vou absorvendo as coisas do mundo e jogando no papel. Veio na ideia o que estava acontecendo e saiu o nome “Sem ar, mas com Ideias”. Estamos nesse mundo onde todos têm que viver com a cara tampada, máscara, ar preso, querendo sair e não podemos, mas a mente continua pulsando, as coisas continuam acontecendo. Estou produzindo o som ao lado do Melifona, do Luiz Viola e do Julio Lino. Um time que reuni de artistas que estavam dispostos a fazer parceria e abraçar o Andarilho. Essa sonoridade, ao contrário do primeiro disco “Não esqueça de sobreviver para continuar nos ouvindo”, que tem a característica de passar por estilos diferentes. Tentei trazer algo orgânico com o eletrônico que eu adoro e sentia falta na minha música. Nem digo que eu seja um ex-clubber, mas um eterno clubber! Me juntei com o Melifona e começamos a trabalhar nossas bases com alguns instrumentos orgânicos. A ideia de início era “eu quero timbres mais modernos” que converse com uma galera mais jovem. Eu quero fazer funk, porque quando um artista se propõe a falar que o personagem dele é anarquista, subversivo, tem que fazer o estilo que é mais criticado e mais adorado do país que é o funk. Ser mais ousado ainda, juntar o funk brasileiro com o funk norte-americano. O funk foi muito discriminado na década de 60, não nasceu brotando nas árvores, principalmente porque é da terra da Ku Klux Klan. Inclusive estou lendo a biografia do James Brown para poder entender tudo isto e, aproveitando, lendo também o “Bailes: Soul, Samba-Rock, Hip Hop e Identidade em São Paulo” [de autoria de Márcio Barbosa e Esmeralda Ribeiro].
L8: Agora, as palavras finais para nossa primeira entrevista do Linha 8.
Cha: A mensagem final para esses tempos sombrios: nós temos dois mundos, um criado pelos homens e outro que é da natureza. Podemos percorrer pelo mundo criado pelos homens e absorver tudo, mas entenda, o que vai realmente te transformar e te dar o verdadeiro acalanto é o mundo da natureza. Então, quando você estiver destruído pelos homens se conecte ao natural das coisas.
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