Futebol feminino foi proibido no Brasil por quatro décadas

Veto e perseguição as mulheres praticantes do esporte escancarou o machismo violento da sociedade brasileira contra as mulheres.

Ricardo Westin | Agência Senado
Por mais de 40 anos, as brasileiras foram proibidas de jogar futebol. O veto começou em 1941, na ditadura do Estado Novo (1937-1945), quando o presidente Getúlio Vargas assinou um decreto-lei tirando das mulheres o direito de praticar esportes “incompatíveis com as condições de sua natureza”.

A partir de então, foram frequentes os jogos femininos cancelados por ordem do Conselho Nacional de Desportos (CND), repartição subordinada ao Ministério da Educação. Houve até partidas encerradas à força pela polícia.

As mulheres só voltaram a entrar em campo livremente no fim da ditadura militar (1964-1985). Em 1983, o CND considerou o futebol feminino aceitável e o regulamentou.

De acordo com documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, houve parlamentares que pressionaram pela legalização do futebol feminino. O principal questionamento foi feito em 1977, por uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) formada por senadores e deputados.

A CPI mista não ouviu nenhuma jogadora de futebol. Dados os 36 anos de clandestinidade do esporte, não existia estrela nacional nos gramados. Em vez disso, a comissão recebeu a ex-nadadora Maria Lenk.

Ela disse aos parlamentares que o veto às futebolistas se refletia negativamente em todos os esportes, inclusive nos autorizados pelo governo, e lembrou que, dos atletas registrados nas federações, só 6% eram mulheres:

— É uma quantidade irrelevante. Atribuo isso ao futebol, porque é o nosso esporte nacional. Através do esporte se revelam, se projetam os campeões, os ídolos do povo que merecem imitação. Veem-se terrenos baldios transformados espontaneamente em campos, e eles são ocupados por quem? Por garotos, meninos. A pelada de adultos, também por homens. O clube de futebol, que em qualquer povoado não falta, é sempre só dos homens. A restrição [ao futebol] se reflete no ingresso da mulher no esporte [em geral], porque ela não tem a quem imitar.

Heroína do esporte brasileiro, Lenk foi a primeira mulher da América do Sul a competir nos Jogos Olímpicos, na edição de 1932, em Los Angeles, e fez parte da primeira turma feminina a se diplomar em educação física no Brasil, em 1936.

Jornal Última Hora noticia futebol feminino em 1952: decreto-lei de Vargas deixava brecha para o esporte (Biblioteca Nacional Digital)

Entre os argumentos aos quais as autoridades recorriam para proibir o futebol feminino, estava o de que a violência dentro dos gramados prejudicaria a maior missão delas na sociedade — ser mães. Uma cotovelada no seio, diziam, poderia impedi-las de amamentar. Uma bolada na região do útero poderia retirar-lhes a capacidade de gerar filhos.

Afirmava-se que o corpo das mulheres era delicado demais para o esporte e que, por isso, aquelas que entrassem nesse mundo ficariam masculinizadas no corpo e no comportamento.

Também se dizia que as jogadas desleais e os xingamentos em campo levariam à degeneração moral do “sexo frágil”, que perderia a capacidade ser boa esposa, mãe e dona de casa. Para os inimigos do futebol feminino, era inaceitável que as mulheres trocassem o lar pelo gramado.

Falando à CPI, Maria Lenk argumentou que tudo isso era falacioso:

— A mulher não se esteriliza e não perde as suas características femininas quando pratica esporte. Pelo contrário. Se não tem saúde, músculos trabalhados, resistência física, a mulher jamais será uma boa mãe. Será uma péssima reprodutora nesse sentido físico. A mulher deve fazer esporte, e talvez ela se torne mais independente, porque aprende a lutar. Talvez ela desenvolva qualidades morais que lhe sejam necessárias na luta de ocupar o seu lugar na sociedade. Ela se embeleza, não com aquela beleza de miss, que precisa de máscaras artificiais, mas com aquela beleza natural, saudável, que se reflete na pele, na cor da sua saúde, na sua postura.

A ex-nadadora citou o especialista americano Kenneth Cooper, que nos anos 1960 ganhara fama por defender os exercícios aeróbicos como uma importante fonte de saúde, incluindo a corrida que no Brasil ficou conhecia como “cooper”:

— O futebol não pode ser tão impróprio para a mulher desde que se divulgaram os trabalhos do famoso médico desportivo Cooper, que é meu amigo particular e permitiu que minha filha jogasse futebol no colégio.

A nadadora Maria Lenk, que em 1977 falou em CPI sobre a situação das mulheres no mundo esportivo (MDE/Divulgação)

Na realidade, o decreto-lei de Vargas proibia de forma implícita as mulheres de jogar futebol. Isso ficava subentendido no artigo que falava genericamente das modalidades “incompatíveis com as condições de sua natureza”.

Como muitas mulheres insistiam em ignorar a proibição velada, o CND decidiu acabar tudo mais claro. Em 1965, na ditadura militar, baixou uma norma enumerando os tais esportes incompatíveis. Além do futebol, elas ficaram expressamente proibidas de praticar futsal, futebol de praia, polo aquático, rúgbi, beisebol, halterofilismo e qualquer tipo de luta.

A proibição valia para disputas realizadas em estádio, abertas ao público e organizadas profissionalmente por clube ou federação. Jogos de várzea ou rua, ainda que indesejáveis, não estavam vetados.

A historiadora Giovana Capucim e Silva, autora do livro Mulheres Impedidas — a proibição do futebol feminino na imprensa de São Paulo (Editora Drible de Letra), diz que o veto esteve ligado ao nacionalismo que Vargas impôs ao país no esforço de legitimar a ditadura do Estado Novo:

— No Brasil, o futebol sempre esteve associado à masculinidade e, por tabela, ao poder. Para reforçar a posição do futebol como esporte nacional e símbolo da nossa identidade, era necessário torná-lo ainda mais masculino. Foi o que Vargas fez. Sem que as mulheres pudessem ocupar ou controlar o esporte nacional, os homens detiveram o monopólio do esporte e conservaram o poder em suas mãos.

Capucim e Silva afirma que, no mundo, as mulheres tendem a ser afastadas dos esportes nacionais. Nos Estados Unidos, por exemplo, elas têm pouca presença no futebol americano. Na Austrália e na Nova Zelândia, isso se vê no rúgbi. Na Índia, as mulheres não desfrutam do mesmo prestígio dos homens no críquete e no hóquei sobre a grama.

A historiadora lembra que nos Estados Unidos o futebol, chamado de “soccer”, é mais feminino do que masculino e explica:

— Não existe esporte que seja masculino ou feminino por si mesmo. Trata-se de uma construção, uma interpretação cultural. Como o esporte é uma invenção humana, ele ganha o significado que lhe damos. Sendo construído, o significado cultural também pode ser desconstruído.

Notas da Última Hora em 1959 tratam da proibição do futebol feminino e também do sucesso da mulher no tênis (Biblioteca Nacional Digital)

A CPI mista de 1977 não tratou exclusivamente da proibição do futebol feminino. Ela teve o propósito mais amplo de investigar a histórica posição subalterna das mulheres na sociedade e propor soluções. A comissão ficou conhecida como CPI da Mulher.

A investigação parlamentar foi aberta a pedido do senador Nelson Carneiro (MDB-Guanabara), na época sob os holofotes por ter escrito a Lei do Divórcio, que estava em discussão no Congresso Nacional e seria aprovada após a conclusão da CPI.

No pedido de criação da CPI da Mulher, Carneiro escreveu que a sociedade brasileira dava às mulheres “tratamento de segunda classe”:

“Já não é possível ignorar a posição de inferioridade atribuída à mulher em todos os setores da atividade humana, situação esta que está refletida não somente no comportamento das pessoas, mas no próprio ordenamento jurídico. Não creio que seja racional manter o status quo, a farsa e o desequilíbrio — a discriminação, enfim — em razão de meros preconceitos, ainda que solidificados durante milênios”.

A ex-nadadora Maria Lenk contou aos parlamentares que sentiu o machismo também nos bastidores do esporte, quando foi a primeira mulher a tornar-se conselheira do CND. Ela lembrou:

— Eventualmente, o conselho tinha que se pronunciar sobre penalidades dadas aos jogadores [de futebol]. Querendo analisar súmulas dos diálogos havidos entre jogadores e juízes, diálogos certamente não muito corteses, pediam que eu me ausentasse do recinto para não participar disso.

Também lembrou que foi a primeira mulher a dirigir a Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ):

— Os homens não aceitaram. Em protesto, quem podia se aposentou ou então pediu transferência para outra unidade. Os que permaneceram se colocaram na oposição, mas uma oposição que eu não gostaria de citar aqui, de tão triste que foi. Também foi a primeira vez que um professor, de qualquer dos dois sexos, foi nomeado diretor de uma Escola de Educação Física, até então dominada pelos médicos e pelos militares. Foi uma grande conquista não para o sexo, mas para a classe. Porém, o orgulho do machismo foi mais forte que o interesse da profissão.

A deputada Lygia Lessa Bastos, da relatora da CPI da Mulher, e o senador Nelson Carneiro, que propôs a criação da comissão de inquérito (Arquivo Câmara dos Deputados e Célio Azevedo/Arquivo do Senado)

O acervo do Arquivo do Senado também guarda o depoimento dado à CPI da Mulher pela jornalista Íris de Carvalho, que tivera uma coluna sobre tênis nos diários cariocas Correio da Manhã e O Jornal.

Carvalho lembrou que, numa mesma modalidade, os prêmios dados às campeãs eram invariavelmente mais baixos que os prêmios dados aos campeões:

— No momento em que falo a Vossas Excelências, ocorrem em Londres os preparativos para a comemoração do centenário de Wimbledon, campeonato internacional de tênis. Ao titular da chave masculina caberão 15 mil libras, enquanto à titular da chave feminina restarão 13,5 mil libras, assim mesmo porque as mulheres fizeram greve em revide à disparidade reinante. Cinco anos atrás, ao campeão cabiam 5.000 mil libras e à campeã, 2.400 mil libras, menos da metade.

Tratando do tênis no Brasil, ela prosseguiu:

— Nossos campeonatos, em geral, não premiam em dinheiro. Somos pobres. Se houver um campeonato, seja ele da cidade, estadual ou nacional, ao titular masculino será oferecida uma taça de primeira grandeza, a maior, a mais bela. Quanto à reservada à titular feminina, será ela um arremedo da que couber ao titular masculino. Nas poucas vezes em que aconteceu prêmio em dinheiro, o agraciado foi o homem, nunca a mulher. Argumenta-se que “os homens conseguem maior público”. Como o garantem? Isso já foi realmente precisado? Dentro da discriminação reinante, o resultado não pode ser outro. Sejam dadas às mulheres as mesmas oportunidades de que gozam os homens, e elas mostrarão seu real valor.

Carvalho foi irônica quando mencionou o veto ao futebol feminino:

— Em recente congresso de medicina esportiva, mais uma vez foi defendida a tese de que o futebol é prejudicial à mulher em razão de sua constituição física. Seus joelhos são frágeis! É nobre que os legisladores e os dirigentes se preocupem com a mulher e queiram protegê-la. Tais cuidados não deixam de ser uma discriminação contra o homem, que fica entregue à própria sorte. Certos esportes por ele livremente praticados podem ocasionar-lhe lesões cerebrais irreversíveis, no entanto…

Trecho do relatório final da CPI que pede a liberação de todos os esportes para as mulheres (Arquivo do Senado)

A própria CPI da Mulher, em certos aspectos, refletiu o machismo da sociedade. Dos 22 senadores e deputados integrantes, 21 foram homens. Mulher, só a deputada Lygia Lessa Bastos (Arena-RJ).

Num dos debates, o deputado João Menezes (MDB-PA) comentou:

— Dona Íris [de Carvalho] falou aqui em concurso de beleza, além do esporte, estabelecendo essa diferença entre as mulheres. Podíamos perguntar: não seria isso uma discriminação em relação aos homens? Por que as mulheres têm direito aos concursos de beleza e os homens não têm? Apesar disso, já ocorre uma certa evolução, porque já tem homem desfilando por aí também.

A CPI da Mulher se encerrou em outubro 1977, após seis meses de trabalho investigativo. A elaboração do relatório final coube a Lygia Bastos, a única mulher da comissão. No documento, ela fez uma série de recomendações ao poder público com o fim de diminuir a desigualdade de gênero no Brasil.

Em relação aos esportes, a relatora pediu a revogação das normas que limitavam aqueles permitidos às mulheres. Também recomendou que o poder público estimulasse a presença delas na direção das entidades esportivas.

Aparentemente, a ditadura militar não deu importância para as recomendações da CPI, já que a proibição só começaria a cair dois anos mais tarde — e seria por etapas.

Em 1979, o CND abriu a primeira brecha, com uma norma estabelecendo que as mulheres poderiam praticar qualquer esporte que já estivesse regulamentado pela respectiva entidade internacional.

No caso do futebol feminino, o afrouxamento só não foi completo porque a Federação Internacional de Futebol (Fifa) ainda estava reticente quanto a aceitar mulheres de chuteiras.

Jornal Última Hora noticia torneio de futebol feminino na praia de Copacabana em 1983, ano da liberação do esporte (Biblioteca Nacional Digital)

No Brasil, um dos adversários da liberação foi o ex-técnico da seleção masculina de futebol João Saldanha. Em 1979, como comentarista esportivo, ele escreveu numa revista:

“Já imaginou, meu jovem leitor? Suponhamos que você está engrenando um papo esperto com uma garota e vem com aquela conversa de passarinho: ‘Escuta, milha filha, meu benzinho, eu acho que dá pé. Eu já sou formado em engenharia. E você, o que faz?’. Aí ela responde curto e grosso: ‘Eu sou zagueiro central de um time lá de Niterói’. Que tal, ah?”.

Deixando o sarcasmo de lado, ele acrescentou:

“Assisti a algumas partidas entre jogadoras chamadas de primeira qualidade, na Itália e na Inglaterra, e posso garantir que o jogo é feio. Algo assim meio híbrido. Não tem a graça feminina nem o vigor masculino”.

Até Pelé se manifestou na época:

— Pode até ser um passatempo, mas não um verdadeiro esporte para as mulheres.

Em 1983, quando a Fifa avançou e deu sinais de que se abriria para as mulheres, o CDB deu o segundo passo e aprovou a tão esperada norma, que começava da seguinte maneira: “O futebol feminino poderá ser praticado nos estados, nos municípios e nos territórios”. A modalidade ficou submetida às federações estaduais e à Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

De acordo com a historiadora Giovana Capucim e Silva, a ditadura militar passou a ver o futebol feminino com outros olhos depois do êxito brasileiro na Copa do Mundo de 1970. Com a conquista do tricampeonato, os militares experimentaram um aumento de popularidade e calcularam que, liberando o esporte para as mulheres, as taças femininas também poderiam vir, o que poderia gerar mais apoio ao governo autoritário.

A seleção brasileira enfrenta a panamenha na Copa do Mundo Feminina de 2023, na Austrália (Thais Magalhães/CBF)

A historiadora entende que a proibição deixou um “prejuízo incalculável” no Brasil porque, mesmo passados 40 anos da liberação, ainda é forte a crença de que futebol não é para mulher:

— Passamos quatro décadas sem ver mulheres no futebol. Houve, claro, aquelas que enfrentaram o sistema e jogaram na clandestinidade, mas não apareceram para a sociedade. Mesmo liberado, o futebol feminino não foi imediatamente levado a sério. Vendeu-se mais o corpo das mulheres do que a performance esportiva. Grande parte dos brasileiros não está acostumada a vê-las no futebol. Muitos até se incomodam, repudiam, entendem que o esporte é inadequado para elas. Jogadoras que hoje são profissionais tiveram que enfrentar a família e até sair de casa para se dedicar ao futebol.

Ela diz que o poder público tem hoje a obrigação de promover o futebol feminino:

— Se foi o Estado que proibiu o esporte por tanto tempo e levou às dificuldades que vemos agora, não há nada mais justo do que promover medidas de reparação. Elas começam a aparecer, como a liberação dos funcionários públicos durante os jogos da seleção brasileira na atual Copa do Mundo de Futebol Feminino. Mas ainda há muito a fazer. Uma das medidas mais urgentes é investir no futebol de base. É praticamente impossível formar atletas profissionais sem incentivar e financiar as crianças e as adolescentes.

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