Por Roque Silva
Vivemos dias dramáticos em nosso país. O genocida que ocupa a Presidência e seus apoiadores defendem a ditadura e as torturas. Um dos seus grandes heróis é o coronel Ustra, que foi um dos líderes dos torturadores durante a ditadura militar, que durou de 1964 a 1985.
Quem não viveu nesse período e mesmo muitos que viveram não têm muita ideia sobre o que foi esse período.
Aqui apresento um relato sobre o que ela significou para mim e minha família, especialmente para meu irmão João Domingues da Silva, que foi militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), preso e torturado até a morte e para minha irmã Iracema Maria dos Santos, na casa de quem João foi preso.
Quando prenderam meu irmão, eu já estava preso há seis meses. Eu era militante da VPR e tinha sido preso no dia 2 de fevereiro de 1969, quando ia me encontrar com um companheiro que, não sabia, tinha sido preso e, sob tortura, levou os torturadores ao ponto de ônibus onde ia se encontrar comigo. Quando cheguei e cumprimentei o companheiro, vários policiais que “esperavam ônibus” me agarraram, jogaram dentro de uma viatura e já começaram com as torturas. Queriam saber principalmente onde estava o Capitão Lamarca, além de vários outros companheiros da VPR que já tinham identificado.
Foram alguns dias terríveis. Fazia apenas nove dias que o Capitão Lamarca tinha abandonado o Exército, o que aumentou ainda mais o ódio e a violência da repressão. Como eu era um dos dirigentes da VPR, os torturadores acreditavam que eu teria como chegar ao Lamarca.
“Chegando na Operação Bandeirantes (OBAN) já tiraram minha roupa, penduraram-me no “pau de arara”, com fios elétricos amarrados no pênis, nas orelhas, nos dedos, enfiados no ânus, com corrente elétrica de 220 volts. Eram três torturadores que, com violência inimaginável, queriam saber o paradeiro de Lamarca e de outros companheiros”.
O auge da violência foi quando, com um alicate, quebraram um dente, que já estava cariado, para dar choque no nervo que ficou exposto.
Nesse momento desmaiei. Então me jogaram em um canto e foram “cuidar” de outros companheiros que já estavam presos. Quando recuperei os sentidos, pensei que, se tinha aguentado a tortura até o desmaio, aguentaria até a morte e não entregaria ninguém. Esse raciocínio me ajudou a perder o medo de não aguentar e entregar algum companheiro.
Então mudei de comportamento. Deixei de ficar calado e comecei a “enganar” os torturadores. Era uma tarde e disse que ia me encontrar, no outro dia pela manhã, com um companheiro que eles não conheciam. Então interromperam as torturas e começaram a cuidar do meu corpo, da minha aparência, para que pudessem me levar, no dia seguinte, ao encontro.
Como não apareceu ninguém, perceberam que estavam sendo enganados e a violência se tornou ainda maior. Eu dizia que o companheiro provavelmente teria sido informado da minha prisão e por isso não tinha comparecido. Face à violência insuportável, falei que tinha encontro com outro companheiro no dia seguinte pela manhã. Não queriam acreditar mas tiveram que amenizar as torturas para que, no dia seguinte não estivesse com o rosto deformado na hora do encontro.
Foi assim que o desmaio, no auge da violência, depois de mais de vinte e quatro horas seguidas de tortura, levou-me a pensar e mudar o comportamento frente aos torturadores, possibilitou-me continuar vivo.
Depois de mais de vinte dias sendo torturado e convivendo com a tortura de outros companheiros, fui levado para o Presídio Tiradentes, que era exclusivo para presos políticos. Fiquei em uma cela com outros nove companheiros. Eram cinco beliches.
Iracema e João
O dia 29 de julho de 1969 foi normal na vida de Iracema. Despertou às cinco da madrugada, acordou a filha Eliana e o marido, tomaram café, levou Eliana para a escola e às 7h assumiu o trabalho de cozinheira na Escola “Marechal Espiridião Rosa” no Jaguaré.
Saiu desse trabalho às 16h, levou a filha para casa e foi para a Escola Deputado Augusto do Amaral, onde trabalhava de inspetora de alunos. Às 21h50 voltou para casa, arrumou a cozinha e deixou tudo preparado para o recomeço às 5h da madrugada seguinte.
Às 23h, quando estava indo dormir, ouviu uma batida conhecida na janela. Era o João Domingues da Silva, nosso irmão de 20 anos. Iracema foi correndo abrir a porta, olhou para todos os lados e fechou a porta novamente. João, que estava na clandestinidade, entrou todo ensanguentado. Tinha rompido um cerco policial e recebido um tiro do lado esquerdo do peito, logo abaixo do mamilo.
Iracema imediatamente começou a fazer um curativo para estancar o sangue. Constatou que não era nada grave. Apenas uma bala.
Minutos depois a casa foi invadida e cercada por dezenas de policiais. Revistaram tudo e levaram presos João e Adolfo, marido de Iracema. Em seguida invadiram uma casa próxima, de meus pais, e levaram nosso pai e meus outros irmãos Liceu e José, um adolescente de dezessete anos.
Iracema não levaram, deixaram de “isca” e ficaram vigiando a casa para ver se chegava alguém.
Como ela não saiu e não chegou ninguém, voltaram às 4h30 da madrugada e a levaram diretamente para o Comando Geral do 2º Exército. Interrogaram-na durante 40h seguidas. Acusaram-na, como saiu na manchete dos jornais do outro dia, de ser enfermeira da VPR, mas queriam saber mesmo era o paradeiro do Capitão Lamarca. As equipes de interrogatório se revezavam.
O momento mais terrível para Iracema foi ver que um dos integrantes da equipe de torturadores era o professor Ramos, professor na escola em que ela trabalhava e pai de um aluno. Depois de 40h, quando já nem compreendia mais as perguntas que faziam, deixaram-na por um tempo.
“Porém durante quatro dias sofreu esses interrogatórios constantes, sem água, sem ir ao banheiro, sem nada. Solta, a seguiram todo o tempo. Suas pernas tremiam quando ia para o trabalho, pois tinha que conviver com aquele “professor” torturador como se nada tivesse existido entre eles.”
Logo após ser solta, foi ao Hospital das Clínicas saber notícias do irmão João. Lá foi informada que depois de ter sido internado apareceu uma equipe de médicos e enfermeiros e o levaram para exames e nunca mais voltaram. João foi sequestrado do Hospital das Clínicas por policiais disfarçados de médicos e o mais lógico era que tivesse sido levado para o Hospital Geral do Exército, no Cambuci. Começou aí a via-crúcis de Iracema para encontrar nosso irmão.
Ela foi incontáveis vezes ao Hospital do Exército. Perguntavam o nome dele, buscavam papéis, olhavam muito para ela e nada. Ele não estava lá, diziam. Ela não desistia. Além disso, os companheiros com quem ela mantinha contato cobrindo pontos, ou que se encontravam no presídio Tiradentes, como eu, aconselhavam-na a não desistir de procurar o João no H.G. do Exército.
Corajosamente, Iracema ía do presídio para o trabalho ao lado do torturador, ajudava seus velhos pais que tinham dois filhos presos, sendo um no Presídio Tiradentes e o outro desaparecido. Uma das vezes que foi ao H.G. do Exército, quando perguntou aos soldados na portaria, um deles, que estava chegando, perguntou ao da guarda: “não é aquele magrinho que está na 5ª enfermaria? ” Iracema percebeu tudo, porém não pôde entrar, não deixaram.
Nos dias de visita ao Presídio Tiradentes, os presos aguardavam sua chegada com ansiedade. Ela trazia notícias dos companheiros da VPR, que continuavam na luta e levava informações para eles.
No 43° dia da prisão do João alguns policiais foram ao seu trabalho dizendo que iam levá-la porque o João precisava ser operado urgentemente e o Hospital precisava da autorização dela. Iracema reagiu dizendo que não ia. Que todos os dias ia ao Hospital e diziam que ele não estava lá. E que o responsável maior por ele era seu pai.
Então que fossem buscar a autorização com ele, pois sabiam muito bem o endereço, já que tinham ido muitas vezes à casa dele. Os policiais insistiram que tinha que ser ela porque em seus momentos de delírio João a chamava: Ira, Ira. “Não é você?” Ela resistiu ainda, mas eles garantiram à diretora da escola que Iracema não seria presa. Só então ela consentiu em ir com eles. Deram a ela um calmante dizendo que ia precisar, e entraram justamente na 5ª Enfermaria. O choque foi tão grande que Iracema não conseguiu controlar a urina que escorria por suas pernas.
“João estava completamente desfigurado: só pele e ossos. E a boca toda dilacerada, faltando pedaços. Mesmo assim ele reconheceu sua irmã e esboçou uma espécie de sorriso”.
O desespero tomou conta dela, e tremendo, foi levada para conversar com os que se diziam médicos, com uma pilha enorme de papéis para ela assinar, dizendo que era autorização para uma cirurgia complicada, da qual dependia a vida dele. Ela assinou. E em seguida percebeu que era um truque. Viu alguma coisa que dizia que a família, através dela, estava acompanhando o tratamento desde o momento da prisão.
Feita a cirurgia, Iracema pôde visitá-lo algumas vezes e ele apresentava melhoras. Na última vez que ela viu João vivo foi no dia 21 de setembro. Chegaram a fazer planos para o futuro.
No dia 25 de setembro, quatro dias depois de vê-lo melhorando, os torturadores foram de novo na escola. Ela levou um susto imenso. Eles avisaram que João estava morto e que era preciso retirar o corpo do IML. Foi uma correria de dia inteiro para liberar os papéis, o atestado de óbito etc., que só se completou no final da tarde. O corpo foi entregue congelado, lacrado em uma urna, colocada dentro do caixão. Dava para ver os olhos, parte do rosto que era pura pele e osso, e o nariz. A boca estava tampada.
Fizeram o velório assim mesmo. Muita gente acorreu. Ele era muito querido. No meio do povo havia muitos policiais disfarçados. O povo tomou o caixão dos agentes funerários e o levou nos braços pelas ruas de Osasco.
Iracema continuou com os dois trabalhos, sendo um ao lado do professor torturador. Ao mesmo tempo convivia com os revolucionários quando os visitava no presídio e os encontrava nas ruas. Iracema cuidou da família, da sua própria vida, dos velhos pai e mãe e dos irmãos mais frágeis.
Antônio Roberto Espinosa, que foi dirigente da Var-Palmares e que estava preso no Tiradentes, disse que Iracema foi mãe, irmã, mulher e companheira de todos que lutaram pela democracia e pela liberdade, contra a ditadura.
Roque Silva
Roque Aparecido da Silva, é um dos líderes da Greve dos Metalúrgicos de Osasco de 1968. Ex-Secretário de Cultura de Osasco e Mestre em Sociologia pela Universidade Sorbonne, Paris.
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