Literatura | Um Conto Futurista e Fanstasmágico

Em ‘Tá Combinado’, Márcio Rosa se inspira na canção de Caetano Veloso para compor uma sensível e subversiva história de amor. Confira.

Um mundo onde o amor é proibido, um andarilho que espalha mensagens proibidas vira alvo de uma caçadora de recompensas. Porém, quando se encontram, ambos percebem que já se conhecem de outros carnavais. Em “Tá Combinado”, Márcio Rosa se inspira na canção de Caetano Veloso para compor uma sensível e subversiva história de amor.


TÁ COMBINADO

Porque toda razão  /  Toda palavra
Vale nada quando chega o amor
(Caetano Veloso)

Por Marcio Rosa |

Centenas de anos depois de sua morte, a juventude apaixonada ainda curte Caetano Veloso, mesmo que isso seja totalmente proibido. O andarilho caminhava sem rumo pelo centro de São Paulo, escutando o tropicalista nos fones de ouvido, observando os prédios antigos e as novas fachadas de luz sólida. “Apague a estrada que seu caminhar já desenhou”. As propagandas que brilhavam por toda parte falavam dos novos modelos de aeromóvel, das vantagens dos programas de colonização e, principalmente, das regras adequadas de conduta social. Há muito tempo não passava por ali, lugar cheio de história e memórias. Sorria discreto e caminhava com passos plenos de certezas.

Dois drones de segurança, enormes besouros robóticos voadores, faziam ronda na noite fria para garantir as conquistas da civilização. Seus alto-falantes lembravam a todo momento as regras: “O cidadão de bem deve contribuir com a comunidade, obedecer seus superiores, ser temente a Deus e, acima de tudo, não pode amar”. Apenas o andarilho caminhava pela rua, vigiado por dezenas de câmeras. “É proibido qualquer forma de afeto, de envolvimento pessoal, de paixão. Todos precisamos cooperar com a ordem social”. A voz metálica ecoava no peito, nas batidas do coração.

Nathália Pimentel

Quando percebeu que estava sozinho, aguardou o drone entrar em seu campo de ação e pressionou o botão escondido na manga de seu moletom de capuz. O pulso eletromagnético emitido fez os enormes robôs caírem no chão e as câmeras da região piscarem. Abriu a mochila e pegou sua arma. Escalou um prédio antigo, subindo pelos detalhes da fachada, e com uma lata de spray  escreveu: “então tá combinado, é tudo somente sexo e amizade”.

 *  *  *

Fiquei surpresa quando me chamaram para essa missão. A caçada na cidade é mais difícil, e o alvo é um figura ligeiro e arisco. Um andarilho, um pixador, um vândalo. Aquele maldito burocrata prometeu que essa seria a minha última missão. Fui condenada por manter um afeto, e agora sou uma prisioneira, uma caçadora de marginais. Faz anos que estou nessa, já vi de tudo. Alguns eram ótimos, outros nem tanto, uns eram legais, outros bonitos ou charmosos, vários apenas bestas, mesmo. Mas não tem nenhum engano ou mistério. Tinha que matar todos eles para conseguir o perdão do governo, afinal.

O meliante só podia estar naquele inferninho no Anhangabaú. O atendente do bar limpou a mão no avental engordurado e serviu um torresmo para um bebum. O que me interessava, contudo, estava na escada escondida no fundo, bem em frente aos banheiros sujos.

Lá em cima era outro universo, como passar por um portal e chegar em uma balada das antigas. Tocava uma música do Caetano que eu simplesmente adoro. “E eu acredito num claro futuro, de música, ternura e aventura”. Aquele cheiro de gente e de pegação, de beijo na boca e carnaval, de suor com feromônios, não era estranho pra mim. Fazia muito tempo que não sentia aquela batida grave no peito. Meu coração acelerou no ritmo da música. Não podia perder o controle, mas mal conseguia segurar meus quadris.

Adoro flertar. Sou uma matadora de aluguel, uma caçadora de recompensas. “Mas se o amor chegar pra nós, em nós, de algum lugar”. Meu olhar, treinado, passeou sobre os corpos. Tava muito gostosa num vestido vermelho, e o cabelo holográfico ajudava a arrematar o visual.  Caçando amantes, mas eu mesma não consigo seguir essa lei surreal. O lugar era um verdadeiro antro de depravados, cheio desses rebeldes do amor, em crime à vista de todas e todos. Deus me livre. Precisava terminar o que fui fazer ali. Mas não parava de pensar: que delícia.

Foi quando finalmente o encontrei. Aqueles olhos amendoados inesquecíveis. Não podia ser ele, mas era. Naquele momento, entendi o porquê de ser escolhida para a missão. Esqueci de tudo mais, ou de quase tudo. Só lembrava da gente, de todo aquele tenebroso esplendor que tinha sido. Caminhei em sua direção e disse oi. Sei que ele percebeu o que estava acontecendo, mas mesmo assim ficou ali, parado, me olhando. Dane-se a missão, essa merda toda do governo. Não aguento mais isso. Tinha que ser na última vez? Era pra matar, mas, droga, eu amo ele.

Quando a vi andando em minha direção tive um pouco de medo, mas não podia mais fugir de mim. Pensando bem, sempre fui um cara meio medroso. Foi assim que sobrevivi esses anos todos, escapando do amor pelas beiradas. Mas já deu. Mesmo depois de tanto tempo, eu ainda amo essa mulher. Apesar dos desencontros, apesar de ser proibido, mesmo que tudo já tenha sido somente sexo e amizade, brincadeira e verdade. Parece que tudo nos levou até aquele momento. A gente se beijou ali mesmo, no meio da pista de dança. “Mas e se o amor já está, se há muito tempo que chegou, e só nos enganou?”

Foi muito estranho, mas comecei a ouvir umas vozes dentro da minha cabeça, a sentir umas coisas esquisitas. O beijo era forte, apaixonado, e tinha sabor de saudades. Nossas línguas dançavam e nossa imaginação voava ao ritmo da música do Caetano. Sentia que meu amor era tanto que irradiava, transbordava, e eu estava ao mesmo tempo em mim e em todo mundo que existia ali. Uma aura dourada, suave e cintilante, envolveu meu coração naquele momento. Tenho certeza que a própria realidade vibrou em outra frequência naquela hora, e o mundo foi mais feliz e livre por um instante.

O amor nos levou muito longe, até o mais que humano. Era uma conexão total, corporal e telepática, como se, naquele momento, eu tivesse algum tipo de super poder. “Podermos ver o mundo juntos, sermos dois e sermos muitos, nos sabermos sós sem estarmos sós”. Eu apertava a cintura dela, sentia sua respiração, seu corpo pulsar. O toque nos lábios me fez lembrar de todo meu passado e futuro, de tudo que eu já fui e ainda vou ser, das coisas todas que deixamos de viver e também de tudo que ainda viveremos. Percebi que o amor e a liberdade caminham juntos para um claro futuro, hipnotizado pela voz da Maria Bethânia, enquanto ela se afastava de mim, apagando a estrada que seu caminhar tinha desenhado.

Publicação original

Marcio Rosa é viajante da cidade grande e pai de um menino. Poeta e prosador, gauche na vida, degustador do absurdo, libertário e psiconauta, ainda cheio de esperanças. Realismo mesmo é ficção científica.

 

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